quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Corpo e Alma


Ambientada de forma cirúrgica em um matadouro, tragicomédia romântica Corpo e Alma (A Teströl és Lélekröl, Hungria, 2017) de Ildikó Enyedi apresenta duas pessoas introvertidas que descobrem dividir o mesmo sonho todas as noites e intrigados, incrédulos e assustados, tentam recriar o que acontece durante a noite quando estão acordados. Altamente divertido e criativo, é o representante Húngaro na briga pela indicação ao Oscar 2018 de filme estrangeiro, e com a exclusão de Bingo - O Rei das Manhãs (Brasil, 2017) de Daniel Rezende do páreo, por enquanto este é meu favorito.


Com uma trama peculiar que apresenta dois colegas de trabalho em um matadouro (que rende cenas chocantes, inclusive uma decapitação!). Endre (Morcsányi Géza) é o chefe, diretor financeiro e Mária (Alexandra Borbély), uma analista de qualidade recém ingressa na empresa, após empregada anterior ter entrado de licença maternidade. Ambos são tímidos, retraídos e carregam seus traumas. Endre já sofreu com a perda de um grande amor e evita se machucar novamente, sendo que agora mora sozinho e possui um dos braços paralisados por uma demência, enquanto que Mária é um tanto quanto metódica, seguindo fielmente as regras (rebaixa a classificação das carnes por conta de dois milímetros a mais de gordura), e não interage com os demais funcionários, sendo quase uma robô. Ela tem uma memória incrível, mas não consegue interagir com ninguém, e sabe muito pouco sobre sentimentos e seu próprio corpo, chegando a ser acompanhada há muitos anos por um terapeuta infantil. Ou seja, ambos possuem suas deficiências, ele mais física, ela mais emocional. Suas interações ocorrem a maior parte das vezes na hora do almoço, no restaurante do abatedouro de gado. 



Acidentalmente, após um incidente com um produto químico utilizado para estimular o cruzamento animal, eles acabam descobrindo que sonham as mesmas coisas durante o sono, quando são um casal de cervos numa florestaAlgumas cenas são hilárias, especialmente aquelas envolvendo a psicóloga (que parece demais com a Jennifer Lawrence) e é a chamada para auxiliar a empresa num inventário psicológico dos funcionários, após recomendação da polícia, para descobrir quem furtara uma droga do estoque da empresa. Aos poucos, eles decidem tornar os sonhos realidade, apesar das dificuldades no mundo real, pois eles se desejam, mas só conseguem se comunicar através do sonho que compartilham. O filme vai cativando aos poucos, sendo demasiadamente interessante acompanhar essa singular relação.


O trabalho de direção é primoroso, especialmente nos detalhes, naquilo que é implícito, no que não é dito, mas construído apenas com as imagens e a atuação dos atores principais. O ritmo do filme é desacelerado, mas ele consegue prender a atenção enquanto vamos percebendo os detalhes dos fatos que estão sendo mostrado pelo roteiro. A montagem que intercala as cenas do sonho é digna de elogios. O contraste do ambiente do matadouro, para o ambiente idílico do sonho é extremamente necessário. Questões de afeto e delicadeza e de violência e brutalidade se alternam a ponto de culminar numa bela cena, onde acompanhamos uma tentativa de suicídio sendo interrompida pelo poder do amor existente num simples contato telefônico. Na ligação, as palavras de Endre repletas de paixão, enquanto vemos o sangue jorrando das veias de Mária é um paralelo incrível de como o amor é o antídoto para as dores da vida.


Há ainda espaço para personagens secundários, como o diretor de RH Jenö (Zoltán Schneider) e o recém contratado Sándor (Ervin Nagy), ambom bem machistas e com comentários que são típicos num ambiente corporativo. A trilha sonora é muito boa e tem uma cena muito engraçada, que também é marcante, na qual a canção What He Wrote de Laura Marling que se destaca e tem uma letra combina perfeitamente com o sentimento que o filme quer transmitir. A fotografia do longa também é esplendorosa, nos diversos ambientes que o filme aborda.

Veja e ouça What He Wrote de Laura Marling:


Vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival Internacional de Cinema de Berlim, o filme é uma poesia linda acerca do dom supremo do amor, numa história pra lá de inusitada, mas que certamente ficará na memória dos que tiverem o privilégio de acompanhar essa trama.

Acompanhe o trailer de Corpo e Alma:

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