terça-feira, 29 de agosto de 2017

Bingo - O Rei Das Manhãs


Drama nacional Bingo - O Rei Das Manhãs (Brasil, 2016) de Daniel Rezende apresenta a cinebiografia de Arlindo Barreto, um dos intérpretes do palhaço Bozo no programa matinal homônimo da televisão brasileira durante a década de 1980 (originalmente, no filme o palhaço se chamaria Bozo, mas por conta de direitos autorais, o nome foi mudado para Bingo), personagem criado nos Estados Unidos por Alan W. Livingston, em 1946, e que ganhou versões em várias partes do mundo. Longa aborda a destruição causada pela fama e pelas drogas de modo visceral e sincero, com uma bela história de redenção através do testemunho de vida de sua futura esposa, e da fé que ela tinha em Jesus, à ponto de influenciar na vida do homem por trás da máscara.

Nos anos 1980, Augusto (que na verdade é Arlindo Barreto, interpretado de forma magistral por Vladimir Brichta, que emagreceu 8 quilos e teve aulas de circo para o papel) trabalha em filmes da pornochanchada, e consegue pequenos papéis em novelas da Mundial (Rede Globo) graças ao sucesso de Angélica (Tainá Müller) mãe de seu filho Gabriel Mendes (Cauã Martins). Augusto é filho de Martha Mendes (Ana Lucia Torre) que já foi uma atiz de sucesso, mas que agora trabalha como jurada num programa de calouros.


Cansado de não ter uma chance, ele improvisa na gravação de uma cena e acaba sendo demitido, é quando ele jura ao produtor (Pedro Bial) que um dia irá tomar a audiência do canal. Quando vai para um teste em uma novela no concorrente, Augusto descobre que está havendo testes para um palhaço que será o apresentador de um novo programa de TV, é quando ele consegue um emprego que o coloca na frente dos holofotes. Sob uma pesada maquiagem, peruca azul e roupa de palhaço ele se transforma no apresentador de TV Bingo, que todas as manhãs anima as crianças.

De início, o programa seguindo o roteiro americano se mostra um fracasso e sem graça, enquanto prosseguem os testes para encontrarem o palhaço ideal, Augusto decide então procurar um palhaço de circo (Domingos Montagner) para receber aulas, e conseguir fazer rir. Aos poucos ele vai sugerindo mudanças, até enfim alcançar o sucesso, alcançado graças ao improviso, a participações especiais de ícones sensuais como Gretchen (Emanuelle Araújo) e a ideia de receber ligações das crianças ao vivo, Bingo finalmente conquista da audiência, mas por trás das câmeras, Augusto precisa manter sua identidade em segredo, fruto de uma cláusula contratual e acaba se frustrando no anonimato e mergulhando no mundo das drogas, muitas deles oferecida pelo câmera de TV Vasconcelos (Augusto Madeira).

O filme escancara como as drogas de início são uma mera curtição, para depois se tornarem um vício difícil de ser controlado e que pode levar para destruição. Vemos também várias cenas de sexo, nenhuma delas jogadas gratuitamente em tela, todas dentro de um contexto, que contribuem para a história que está sendo contada. Os devaneios de Augusto, também são mostrados, sem censura, como na cena em que ele se imagina transando com sua produtora (Leandra Leal), que posteriormente se tornou sua esposa.

Com a fama e prêmios conquistados por Bingo, Augusto vai se afundando no anonimato e no submundo dos prazeres banais oferecidos pelas drogas. Se envolve com muitas mulheres, e acaba deixando de ter um relacionamento com seu filho, esquecendo data de aniversários, compromissos e chegando literalmente ao fundo do poço e a beira da morte. Ele encontra em seu filho e na religiosidade as forças para se reerguer na vida, se tornando um pastor cristão que até os dias atuais se veste de palhaço para ministrar sermões e evangelizar pelo mundo.

Trata-se de uma surreal história sobre a busca de um homem pelo reconhecimento de sua arte. Não passa em nossa cabeça politicamente correta, a ideia de ver na TV um palhaço sob efeito de drogas se esfregando com a Gretchen enquanto ela canta Conga em um programa para o público infantil. Parabéns a Gretchen por ser a única a permitir o uso de seu nome real em tela, enquanto que todos os demais tiveram que ser alterado.


Arlindo Barreto foi usuário de cocaína e chegou a revelar em entrevistas que a droga o mantinha motivado a trabalhar por horas a fio. No filme tem uma cena fantástica, em que literalmente Bingo sangra pelo nariz diante das câmeras, após usar drogas e entrar no palco. Atualmente Arlindo Barreto é pastor de uma Igreja Batista de São Paulo. O intérprete de Bozo chegou a vencer cinco troféus Imprensa. No Brasil, o palhaço apresentava o Programa do Bozo, sempre cantando: “Alô criançada, o Bozo chegou, trazendo alegria pra você e o vovô...”. Tinha no palco companhia da vovó Mafalda... A atração foi ao ar no SBT entre 1982 e 1992.

A reconstrução da época foi muito bem realizada, com algumas cenas em tomadas aéreas muito bem feitas. O figurino e a maquiagem também deixam claro que estamos diante de uma produção nacional de alta qualidade. Mas o maior destaque é o trabalho de direção de Daniel Rezende que está fabuloso, com seu filme conseguindo a proeza de ser comparado com uma versão tupiniquim de O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013) de Martin Scorcese. Destaca-se a coragem desta cara que foi montador de obras marcantes como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), junto com o excelente trabalho do roteirista Luiz Bolognesi, o mesmo de Bicho de Sete Cabeças (2000), de optarem por uma história pesada, sem suavizar a vida maluca do protagonista, investindo em uma trama que não economiza palavrões, e o real registro dos fatos que marcaram a vida deste homem. 

O roteiro do filme merece vários elogios, pois o texto é denso e sabe alternar momentos de ternura desde o início, numa linda interação entre pai e filho, para em seguida nos jogar para o mundo da pornochanchada. Bolognesi divide com perfeição o texto entre o lúdico e a realidade brutal, entre a alegria exposta na frente das câmeras o fundo do poço por trás delas. O personagem é extremamente complexo, e vemos em tela as diversas camadas tanto a nível pessoal, quanto profissional. Outro exemplo que vemos no filme dessa dicotomia, é a curiosa forma como vemos a relação de carinho entre Augusto e sua mãe, e como ela afeta a realidade de fama e loucura. A dor da perda da mãe é palpável, assim como a revolta de Augusto, a quem ele acusa ser os responsáveis pelo falecimento Martha (sim, mas uma vez a mãe se chama Martha!).

O uso da Trilha Sonora também está fenomenal, seja nas canções da época, ou quando quer transmitir a tensão. O filme tem uma cena clímax em plano sequência que é de tirar o fôlego. Aqui cabe também elogios ao diretor de fotografia Lula Carvalho. Destaco também o belo trabalho de fotografia da cena em que vemos Augusto entrando no palco pela primeira vez, que é tão bem desenvolvida e nos remete às sequências de bastidores do teatro que vimos no premiado Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance, 2014) de Alejandro González Iñárritu. A cena onde ele percebe que foi demitido, e câmera fica meio com se tivesse tombado e Augusto saindo no corredor, com as luzes se apagando também é fenomenal.

O filme além de tudo que já foi dito, também consegue emocionar, em cenas simples do pai buscando um meio de se comunicar com o filho, e ao percebemos a mudança de vida que Augusto teve ao entregar sua vida para Jesus. Wagner Moura era a opção do diretor para interpretar o personagem, mas não podendo atuar em função de sua participação na série Narcos, ele indicou Vladimir Brichta, que entrega uma atuação fora do comum, beirando a genialidade. Destaca-se a pequena participação de Domingos Montagner sendo este seu último trabalho no cinema. Ele que morreu afogado em 15 de setembro de 2016, em Canindé de São Francisco, no Sergipe e teve este filme dedicado em sua homenagem.

Veja o trailer de Bingo - O Rei Das Manhãs:


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